As marcas da ditadura nas favelas cariocas

 

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Militantes de favelas e do MR-8 reunidos

Ainda que de maneiras diversas, o regime militar não deu trégua ao asfalto ou às favelas. O maior impacto que a ditadura causou às comunidades talvez tenha sido a desmobilização de movimentos sociais que começavam a amadurecer no começo da década de 1960, tendo a Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg) como principal representante (com a fusão, passou a se chamar Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro, Faferj). Nos 20 anos da ditadura, líderes comunitários e organizações sociais de favelas foram perseguidos, ao mesmo tempo em que estes lugares eram usados, por movimentos de esquerda, como local de organização e trabalho político.

A luta contra as remoções foi o motivo que norteou a unificação das organizações de favelas – fenômeno que fez parte de um momento de efervescência nos movimentos sociais, nos anos pré-ditadura, tanto no campo quanto na cidade. Foi durante a remoção da favela do Pasmado, em Botafogo, que a Fafeg foi criada. No ano seguinte, já era reprimida pelo regime. As remoções, que durante a ditadura continuaram sendo uma política de Estado através da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam), provocaram, para muitos pesquisadores, a desestruturação de organizações políticas existentes nas favelas removidas.

Um dos principais focos de resistência contra a ditadura estava nas favelas da região central e da Tijuca, explica a pesquisadora Eladir Fátima Nascimento dos Santos, militante na época. “Naquela área, existiam muitos trabalhadores da região portuária, que tendiam a ser bastante politizados. Assim, acabaram juntando a luta sindical com a luta das favelas”, afirma, lembrando que muitos faziam parte do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Em sua dissertação de mestrado – “E por falar em Faferj.. Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (1963-1993) – memória e história oral” –, Eladir entrevista Lucio de Paula Bispo, um dos fundadores da Faferj, que afirmou que o Morro de São Carlos se tornou um “verdadeiro quartel general” de resistência à ditadura.

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Manifestantes da FAFERJ na Câmara Municipal

Não se sabe se entre as vítimas do regime havia morador de favela. Dulce Pandolfi, historiadora e militante torturada no período, acredita que isso pode ter acontecido. “Não se sabe a dimensão da repressão nas periferias e no campo. O que se sabe é o que aconteceu com a classe média, que tem maior visibilidade. Hoje, sabemos do Amarildo pois vivemos em contexto diferente, mas antes o Amarildo era rotina”, aponta, referindo-se à morte do ajudante de pedreiro morador da favela da Rocinha, em 2013.

Mas não só as favelas da Tijuca e do Centro eram foco de resistência. O Jacarezinho também era chamado de “Moscouzinho” por causa da presença de líderes comunitários, como Irineu Guimarães, também ex-presidente da Faferj. Integrante do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), ele foi diversas vezes interrogado e preso pelo DOPS.

Em Vigário Geral, um grupo de dirigentes comunitários também formava um foco de contestação ao regime. Seu Farides, seu Naildo e seu Lins participavam de movimentos sindicais e do Partido Comunista Brasileiro. No livro “História e Memória de Vigário Geral”, de Maria Paula Araujo e Ecio Salles, Naildo conta ter tido que se esconder por algum tempo, fugindo da polícia. Lins teve a casa revistada e afirmou que o PCB teve grande importância para os líderes populares nas décadas de 1950 e 1960. Para despistar os agentes do regime, chegou a pendurar na parede de sua birosca uma placa com o nome dos deputados da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido do governo militar.

Somente no final da década de 1970 os movimentos de favela, assim como os movimentos sociais em todo o país, começam a se rearticular e a se multiplicar. Até então, os congressos da Faferj eram monitorados e diversas associações de moradores, como a União Pró-Melhoramento dos Moradores da Rocinha, foram fechadas. Mesmo fazendo parte de um momento de abertura do regime, a repressão contra os movimentos de favela continuou no final dos anos 70 e início dos anos 1980. Em sua dissertação, Eladir dos Santos inclui diversos boletins do Sistema Nacional de Informações em que líderes e reuniões são monitorados pelos militares.

Quem resistiu?

Para Márcia Vera Vasconcelos, atual presidente da Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro (Famerj), a classe média foi, realmente, quem capitaneou a resistência contra a ditadura. Ela lembra, no entanto, que a repressão estava por toda parte. “Onde se tentava fazer alguma resistência, a ditadura chegava. Não tinha lugar que não tivesse olheiro. A ditadura não brincou”, conta Márcia que, no período, mudou de nome e se disfarçou de operária.

Jocelino Porto, 68 anos, testemunhou a repressão em vários lugares onde morou. No ano do golpe morava no Muquiço, em Guadalupe. “Qualquer grupo com mais de três pessoas conversando, depois de 22h, era reprimido”, lembra. Já nos anos 1970, quando se mudou para Pedras Preciosas, em Rocha Miranda (onde hoje é dirigente comunitário), a situação era parecida. Ele conta que algumas casas chegavam a ser invadidas por agentes do regime em busca de armas e material subversivo. “A ditadura nas favelas também acontecia com a Mão Branca, que matou muita gente”, lembra, referindo-se ao codinome de grupos de extermínio formado por policiais.

Anazir Maria de Oliveira, a dona Zica, é moradora de Vila Aliança, tem 80 anos e é militante desde o final da década de 70. Ela concorda com Márcia na afirmação de que a classe média formou a principal resistência contra a ditadura. Mas lembra: vários organismos na favela ficaram com medo, como a igreja (que teve grande importância na mobilização social nesses lugares, antes e durante o regime) e os sindicatos. Para ela, a população das favelas em geral não se envolvia com a política por ter dificuldade para entender o que acontecia e por estar mais preocupada com a sobrevivência.

Em entrevista para a dissertação de Eladir dos Santos, Lúcio de Paula Bispo, dirigente comunitário do Chapéu Mangueira desde os anos 50, afirma que os moradores de favela contavam com uma vantagem porque “os aparelhos de repressão, por preconceito contra os favelados da cidade, não acreditavam que fossem capazes de se organizar politicamente e lutar contra ditadura militar”. Mesmo assim, ele foi perseguido. Por isso, sua família recebia ajuda financeira do Socorro Vermelho, do Partido Comunista.

O PCB tinha influência em algumas favelas. No Morro da Formiga, no Santa Marta e no Borel, por exemplo, o partido mantinha núcleos em que militantes prestavam diversos serviços comunitários, o que, segundo Eladir dos Santos era comum nos movimentos de esquerda e permitia uma aproximação entre a classe média e as organizações populares. Ela própria, depois de formada, prestava assistência jurídica à população do Parque Proletário da Penha – onde foi detida para “averiguação” três vezes.

Do outro lado da cidade, na Rocinha, a favela sofria repressão por conta da proximidade com a PUC. É o que conta Elisa Pirozi, de 75 anos, ativa na vida comunitária desde os anos 60. Ela lembra, assim como dona Zica, que a população da favela não participava muito da política, por estar preocupada com a sobrevivência. Mas, para Dulce Pandolfi, a população de favelas sempre foi objeto de desejo dos movimentos sociais de classe média. “Sempre foi o desejo da esquerda se aproximar da classe trabalhadora, reconhecida por seu potencial revolucionário. Setores da esquerda, que é muito ampla, como a Igreja, ONGs e sindicatos, já faziam trabalho com as favelas antes de 64. Claro que com a repressão isso ficou mais difícil, mas a relação continuou”, pontua.

(Texto: Mariana Alvim/ Fotos: Coleção Irineu Guimarães)

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