Consumo e porte de drogas para uso próprio

Confira artigo da presidente do Conselho de Igrejas Cristãs do Estado do Rio de Janeiro (Conic-RJ), Lusmarina Campos Garcia, sobre a proibição do consumo ou porte de drogas para uso próprio publicado originalmente no JOTA.

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“As pessoas não vão passar a usar drogas porque deixou de ser ilegal.” | Foto: @fotolia/jotajornalismo

Por Lusmarina Campos Garcia
Presidente do Conselho de Igrejas Cristãs do Estado do RJ

Sem conhecer a realidade sobre o uso e o consumo das drogas não é possível criar as políticas públicas necessárias ao enfrentamento da realidade daqueles que usam para consumo próprio e não se avança no combate ao tráfico. A criminalização impede que se faça um mapeamento dos usuários e de suas práticas, impede ainda que se conheça em maior profundidade o que concerne ao uso, consumo, venda e tráfico de drogas.

A falta de dados reais cria um falseamento sobre a realidade e encobre a verdade, de forma a fomentar os malefícios resultados da falta de clareza. Sem a verdade, não há libertação, é o que ensina o texto bíblico: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8,32).

Por isso, para colocar a questão sobre a mesa, promover o debate público e aberto junto à sociedade, é preciso descriminalizar o uso de drogas. E para tornar a proposta mais específica, falamos de descriminalização do porte de drogas para uso individual.

O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs não tem um parecer oficial sobre o tema.

De modo geral, as igrejas tendem a adotar uma posição conservadora a este respeito. Ao mesmo tempo em que se empenham em cuidar das pessoas usuárias e em oferecer o apoio para que as mesmas se abstenham do uso ou se livrem da sua adicção, se posicionam contra a descriminalização. São influenciadas pela tese de que a descriminalização provocará o aumento inevitável do consumo; ou seja, uma vez desimpedido legalmente, um número maior de pessoas passará a usar drogas.

Isto me faz lembrar uma história do período em que trabalhei como pastora na Paróquia Luterana de Genebra, na Suíça. Em 2006, a Suíça legalizou a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Em nossa paróquia, um homem que vivia um relacionamento estável há 20 anos com seu companheiro me pediu para fazer o casamento religioso do casal. Como aquela prática não era habitual, passamos um ano discutindo o assunto.

Um dos argumentos contrários alegava que a aprovação redundaria na afluência de um grande número de gays da Suíça para a igreja a fim de se casar. Lembrei, na época, que de acordo com as regras internas, apenas os membros da nossa igreja poderiam requerer a realização da cerimônia. Em segundo lugar, argumentei que nem todas as pessoas homossexuais vão para a igreja e, por último, que nem todos os homossexuais frequentadores da igreja têm o desejo de se casar nela. Disse não achar que teríamos muitos casais solicitando que os casássemos. Pois bem, no final do processo de diálogo a paróquia aprovou a realização da cerimônia. Realizamos o casamento dos dois, e foi a única vez em que um casal homossexual se casou naquela paróquia. Até hoje, ninguém mais foi lá pedir para se casar.

Tenho a impressão de que o caso das drogas é semelhante. As pessoas não vão passar a usar drogas porque deixou de ser ilegal. Mas a igreja acaba fazendo a correspondência entre o que imagina ser o acesso universal e o consumo universal. Acredito que o fato de as pessoas se sentirem mais livres para comprar drogas não implica em fazê­-lo de fato. Para começar, nem todas terão dinheiro. Todos têm de fazer escolhas diárias sobre como usar seu dinheiro sem que o orçamento mensal ultrapasse sua renda. Muitos se privam do consumo de várias coisas em seu dia ­a­ dia. Porque optariam por comprar drogas? Porque não é ilegal? Este é o argumento do assombro, ou seja, as igrejas (e não só as igrejas, uma parte da população) se movem sob a sombra do medo, daquilo que elas imaginam que poderá ser.

No entanto, este assombro não tem base real. Quem opta por consumir algum tipo de droga já fez esta opção no passado e fará no futuro, independentemente de seu uso ou porte ser ilegal. Me arriscaria até a dizer que o argumento funciona ao contrário: pessoas, principalmente adolescentes que estão na fase de desafiar a legalidade e usam drogas porque seu porte é ilegal, perderão esta motivação. Ao deixar de ser proibido, já não se configura como um ato arriscado. Talvez perca, portanto, seu poder de atração.

O argumento das igrejas prioriza o que supostamente poderia acontecer com a maioria em detrimento do que já ocorre com o grupo de consumidores. O que é um problema, pois precisamos avançar no âmbito de políticas públicas para o tratamento da questão.

Enquanto mantivermos o consumo ou porte de drogas no campo da moral e não no âmbito da saúde pública, não avançaremos. Sem dados reais sobre este universo, não podemos acompanhar adequadamente os usuários ou fazer um debate aberto e claro que seja realmente informativo para os jovens e adolescentes. Acabamos fomentando o tráfico com toda a sua crueza, violência e malignidade, porque é no ocultamento que o tráfico se fortalece.

A intenção de proteger a população, que é a intenção das igrejas, acaba servindo aos propósitos espúrios do comércio sem controle, sem regras, sem lei, ou com leis impróprias. Em um estado democrático de direito, a permanência de uma atividade como o tráfico de drogas à margem da legalidade é uma violência pela qual todos nos tornamos responsáveis.

A atitude protecionista existe como um mecanismo de promover a dignidade humana. Um dos princípios fundamentais da dignidade humana é a liberdade. Diz o texto de Gálatas: “foi para a liberdade que Cristo vos libertou” (Gálatas 5,1). No entanto, queremos qualificar e normatizar o que é o exercício da liberdade.

Por isso, penso que prestamos um desserviço à população ao impedir que a descriminalização aconteça.

Queremos uma população saudável, íntegra e capaz de lidar com sua condição ou com suas práticas de maneira aberta, conhecendo a verdade, pois de acordo com o texto bíblico, é ela que liberta.

Artigo originalmente publicado no site JOTA.

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